Eugenio Tavares

"O nome de Eugénio Tavares raras vezes aparecia associado a qualquer actividade que não fosse a do compositor de mornas cantadas por toda a parte em Cabo Verde e nas comunidades cabo-verdianas espalhadas pelo mundo. A beleza incomparável das suas composições, o encanto das suas mornas, a riqueza literária dos poemas, compostos na língua materna dos cabo-verdianos, falando das inquietações do amor, da dor da partida, da ânsia do regresso, da saudade, do mar envolvente e seu constante desafio de procurar novos mundos ou de evasão, talvez por si explique essa tendência para ignorar outros aspectos da personalidade de Eugénio. Paira, no entanto, no nosso espírito a dúvida sobre se o facto de Eugénio Tavares ter escrito os seus poemas em crioulo não terá estado na origem de um pressuposto de incultura e de falta de erudição do autor de “Força di Cretcheu” por parte muita gente, sobretudo tratando-se de um poeta de uma ilha como a Ilha Brava, onde a educação oficial se ficava pela quarta classe, e nunca constou que Eugénio Tavares tivesse passado pelos bancos do Seminário ou do Liceu.

Queríamos começar por desmistificar o pressuposto de incultura colado à ilha e alertar para a conotação tendencialmente negativa inculcada pelo termo autodidata, quando se pertende qualificar os antecedentes culturais de Eugénio Tavares, na falta de certificações académicas formais. Basta passar os olhos ainda que de relance pelas publicações da época em Cabo Verde e mesmo já na diáspora para se tomar consciência do erro de avaliação em que tal pressuposto incorre. Isso sem perder de vista, ou iludir o extenso défice educativo da ilha no que dizia respeito à população em geral. Mas era precisamente contra esse estado de coisas que lutava Eugénio Tavares, luta que não travava sozinho.

A tentativa instituição do ensino secundário na Ilha Brava, materializou-se na Escola Principal de Ensino Primário e Secundário, criada em 1845, mas teve curta duração, pelo que a ausência de ensino formal acima do nível chamado de instrução primária era preenchida por professores particulares, normalmente funcionários dos diferentes quadros públicos colocados na ilha, ou mesmo oriundos da mesma.

Não parece, no entanto, que Eugénio Tavares tenha tido a preocupação de obter qualquer certificado de ensino secundário. Mas segundo Felix Monteiro, biografo de Eugénio Tavares, o poeta bravense, uma vez concluida a intrução primária, estudou com o Padre António de Sena Barcelos, António Almeida Leite e Rodrigues Aleixo.

A formação de Eugénio Tavares fez-se no excelente ambiente em que cresceu, entre gente de cultura e conhecimento, a cujas bibliotecas tinha acesso constante e que constituiam para ele autênticos santuários pessoais de estudo. Em todas as ilhas havia aliás os chamados “gabinetes de estudo” que respondiam a essa intensa ânsia de saber, a essa sêde de leitura, só mitigada após os calculados períodos de espera, ao sabor do calendário de chegada dos navios, dos “vapores” , que chegavam a Cabo Verde, trazendo jornais e livros de toda a espécie, criando uma dependência-quase-vício nos leitores das ilhas. Esse era o ambiente em que cresceu, viveu e se formou Eugénio Tavares. Essa foi a sua Escola, a sua Universidade. Uma Universidade em que foi aluno e professor ao mesmo tempo. Mas foi sobretudo aluno do seu povo, da sua terra, da sua ilha, da cultura do seu povo que amou sem condições, sofrendo as suas dores, lutando as suas lutas, sentindo como própria as suas revoltas, porque doutra forma não podia ser, mas vivendo também os seus amores e as dores de quem ama com essa intensidade que se sente nos seus poemas. Essa suprema felicidade só possível pelo amor, a forma sublime de alcançar o céu. A própria casa em que viveu os seus anos de infância e adolescência, casa de seus pais adoptivos, sua madrinha Maria Eugenia Medina Vera-Cruz casada com o médico Dr. José Martins Vera-Cruz, foi um perfeito meio de educação, não só pelo que aprendia no convívio mas também graças à excelente biblioteca de que dispunha o seu protector, um homem de cultura. Eugénio tinha perdido a mãe, que morreu de parto, e o pai que morreu na Guiné, na guerra de pacificação daquela antiga colónia portuguesa.

Aos quinze anos foi “descoberto” pelo poeta bravense Luiz Medina de Vasconcelos que fez a apresentação de um poema seu no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileira, reconhecendo-lhe o talento incipiente manifestado no poema que revelava já, para além de qualidade literária, um notável “conhecimento de língua e metrificação” marcando tão cedo a vocação poética que se ia definindo na idade adulta e na maturidade. A dedicação de Eugénio Tavares à sua terra e ao seu povo, o seu profundo humanismo, a sua preocupação constante com a justiça social, a sua revolta perante a negligência do Governo central e suas extensões locais principalmente perante a situação dos estratos mais desfavorecidos da população da sua ilha em particular, mas de Cabo Verde em geral, levam-no a entregar-se à causa e aos ideais republicanos em plena efervescência na época. Dedica-se ao jornalismo e utiliza a sua pena e extraordinária mestria da língua de Camões como arma de combate, denunciando as situações intoleráveis de injustiça e de incúria e abandono perante os males sociais que minavam a sua terra.

Essa determinação cria-lhe inimigos nas esferas do poder que lhe movem a mais cerrada perseguição, utilizando os meios mais torpes, que o obrigam a fugir para os Estados Unidos, fixando-se em New Bedford. Nesta emblemática cidade da Nova Inglaterra, a cidade-porto dos navios baleeiros, funda o jornal “Alvorada” onde publica um polémico artigo sob o título “Autonomia”, no qual reclama “Africa para os Africanos” e lança, num autêntico desespero de causa, um apelo à independência de Cabo Verde. Desespero de causa, pois é do mesmo Eugénio Tavares a seguinte declaração, citada por Manuela Ernestina Monteiro, segundo o relato de Corsino Fortes:

“Nós cabo-verdianos também temos ouvido falar dessa grande Mãe histórica, velhinha, adorada, que é nossa porque foi dos nossos pais, antiga e gloriosa relíquia da nossa vida colectiva ( ... ) de cujas praias douradas partiram nossos avós a entretecer os ninhos longínquos em que nascemos e a transplantar robustos enxertos étnicos da nossa nacionalidade”. E continua: “ Amo tanto o velho e glorioso Portugal que nunca me deixei arrastar pela paixão e pelo erro de lhe imputar o crime de não tratar como filhas, senão como servas, as colónias. Amo tanto a República que, ainda hoje, lhe não exprobo o descuido de nos conservar fora do raio de acção das claridades democráticas projectadas pela Revolução. Amo tanto Cabo Verde que através de uma existência de lutas, de sofrimentos, com a minha carne lacerada e o espírito batido de decepções, ainda me esqueço de mim para pensar nele; ainda exponho o meu coração às setas ervadas dos meus inimigos para o cobrir de golpes dos que o desamam. E amo tanto os cabo-verdianos que, ainda no meio deste rídículo carnaval da nossa vída cívica; ainda que no centro desta putrefacção social que nos é característica; vendo por toda a parte o interesse particular a disfarçar-se em interesse público; a abdicação onde deverá estar abnegação; lisonja onde deverá erguer-se intransigência; vendo engramponar-se a vaidade, onde deverá impôr-se o mérito; ainda não perdi esperança de os ver, aos meus irmãos cabo-verdianos, unidos, fortes, caminhando não para as vitualhas de uma mesa posta, mas para as aras de um sacrifício imposto pela honra e pelo futuro.”

Não havia contradição entre o amor pelo que era a sua “pátria histórica” – Portugal- e o amor pela sua terra, sua pátria natural, que eram a sua ilha e o arquipélago a que pertence, de nome Cabo Verde, em defesa da qual seria capaz de ir até às últimas consequências que, neste caso, seriam a autonomia e a independência, se necessário fosse.

Esse é o homem que compôs, em verso e em música, os mais belos poemas de amor de Cabo Verde, sua Terra-Mãe. Creio que o que fica em nós depois de ler o que foi escrito, quer como jornalista, quer nas suas cartas e postais, quer nos seus poemas, de ouvir o que foi composto em mornas por Eugénio Tavares, é essa capacidade de amar a causa que abraçou, as mulheres, a sua terra, o seu povo.

É da natureza temperamental de Eugénio esse culto do Amor, e um incuravel culto da mulher e da beleza das mulheres da sua ilha, que cultiva como os canteiros de um jardim, onde coloca em destaque a sua “rosa santa”, mas não resiste a interrogar-se num tom de auto-justificação:

Na cantero de nha peto 
‘N tem um pé de rosera: 
Nha roserinha 
É que é rainha! 
‘N q'rel co todo rospeto; 
Amá de qualquer manera, 
‘N al planta só rosera 
Na cantero de nha peto?

Rador de nha rosa santa 
‘N tem que tem otos pranta: 
Carinhas preta 
Coma violeta;
Chinelinhas cor de prata 
Uns branquinha, otos mulata... 
‘N tem que tem otos pranta 
Rador de nha rosa santa....



Auto-justificação por aquilo que parece ser pecado, mas que com maliciosa irreverência, duvida que o seja, já que é uma dádiva. Como negar aquilo que Deus nos deu?


N ca pidi: nhor Deus qui dam 
Quem que al negâ graça de céu? 
Se Deus dan, el ê di meu 
Se el ê di meu, xan canta


Este culto atinge a sua forma mais sublime quando o poeta eleva a grandeza e a força do amor à dimensão do divino e incomensurável, num hiperbólico recurso poético que quase toca a fronteira da heresia, naquele que é talvez o mais belo poema e mais bela canção de amor de Eugénio Tavares:

 

Força de Cretcheu

Ca tem nada nes' vida 
mas grande qui amor, 
se Deus ca tem medida, 
amor inda é maior, 
amor inda ê maior 
maior que mar, que céu 
ma de entre otos cretcheu 
di meu inda ê maior

Crecheu más sabe, 
É quel que é de meu. 
El é que é chabe 
Que abrim nha ceu... 
Crecheu mas sabe 
É quel 
Que q'rem... 
Se já'n perdel 
Morte já bem... 

Ó força de cretcheu,
Abri nha asa em flor 
Pam pode subi ceu, 
Pam bá pidi simenti
De amor coma es di meu, 
Pam bem da tudo gente, 
Pa tudo conchê céu!



Este poema foi inspirado por uma das histórias mais apaixonantes de amor da Ilha Brava em que forma protagonistas Hermano de Pina e Ana Quirino.

Hermano de Pina era um jovem médico bravense que logo depois de ter terminado o estágio em Portugal regressou á ilha natal onde queria exercer a sua profissão. Não quis entrar para o quadro de saude do arquipélago para não ser transferido para outra ilha. Queria viver na Brava. Era essa a sua ambição: servir a sua ilha. Eugénio Tavares, que tinha 57 anos nessa altura, e Hermano de Pina tornam-se grandes amigos, irmanados pelos mesmo ideais e amor à sua ilha e à sua gente. Conscientes das carências da terra em matéria de estruturas de ensino, empenharam-se em suprir por iniciativa própria essa lacuna dando, nas suas horas vagas, aulas às crianças e ensinando todos aqueles que quisessem aprender. Testemunhos dessa época descrevem os serões passados nas casas de alguma famílias, como autênticos serões culturais, de música e literatura, onde se declamavam poemas e se cantavam canções. Seriam os “serões da província” da ilha Brava.

Nessa vontade de levar ao povo os bens e valores culturais e os diferentes géneros de manifestação artística, Eugénio Tavares e Hermano de Pina chegaram a organizar teatro de rua, com representação de peças pelas ruas de Nova Sintra a que aderia entusiaticamente a população."

Fonte:

www.eugeniotavares.org

www.topicos123.com